NEGRO ROM

NEGRO ROM
INICIATIVA QUE RECONHECE A DIFERENÇA

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Quem Tem Medo da Literatura Contemporânea? (Um Texto Direcionado para Os(As) Futuros(as) Escritores(as) Sem Medo)

(A.Lessa)

O poder na primeira pessoa
Poder em última instância
A mão alcançando o chapéu,
Acima de qualquer circunstância
Poder, poder, poder,
poder até não mais poder.

(O Poder - Marcelo Nova)


Ser humano gosta de poder.
Ser humano é gostar de poder, e do poder.
Ser humano gosta mesmo é do poder.
O universo literário, tão cheio de liberdade, está embriagado do medo da perda. Não é incomum a discussão sobre direitos autorais, sobre os creative commons da vida... Sobre de quem é o poder acerca da criação. O escritor, por mais humilde que finja, tem mania de Deus. Tende a ser o dono de seu universo criativo, da obra de arte – não mexa! Pode quebrar...

O escritor sabe que suas idéias são frutos de suas relações, mas prefere deixar subentendido. Sabe que o livro não vai sumir com o advento da tecnologia, no máximo ocorrerá mudanças no formato - mas mantenha o alarme ligado!
Tão hábil na criação do novo, mas quando falam de cyberliteratura... retrocesso.

E o leitor, o que pensa?
Ora, o leitor é ser humano.

Invoco Charles Dodgson para responder esse problema de lógica:

- Ser humano gosta do poder.
- Escritor gosta do poder.
- Leitor é ser humano.

Será que... leitor = escritor?!

Se sim, de quem é a criação? Quem tem a força, He-man?

Não tenho plena certeza, mas acho que o leitor aprendeu a gostar de interagir com o Big Brother (o da Globo mesmo. Quem dera fosse o de George Orwell...). Gostou de jogar. Talvez queira interagir de forma mais lúdica com a obra literária, não sei... Acontece que essa indefinição nos papéis está causando um rebuliço no mundo literário. E, onde há muita liberdade, há quem se sinta desprestigiado, ou seria desapoderado? Eu diria mais: amedrontado.

Em tempo:

- Charles Dodgson era matemático.
- Charles Dodgson adorava lecionar Lógica.
- Lewis Carrol escreveu Alice no País das Maravilhas.
- Lewis Carrol adorava Fotografia.
- Charles Dodgson é Lewis Carrol.

Será que... matemático = professor = escritor = fotógrafo?

Afeito às novidades, eu quero é mais. Até brincar com meus sofismas... Ou seriam silogismos disfarçados?

P.S: Sou escritor, ser humano, e gosto de poder... poder ser livre.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Nossa Ligação

(A.Lessa)



O celular vibrou
E eu atendi
Crendo ser você
Já não agüentava mais esperar
Pra te ouvir
Dizer com a voz tão meiga:

“- Olá... Meu bem?
Eu te acordei?
Me desculpe pela hora...”

Mas a vibração agora
Atende ao meu chamado
É aprazível e alonga
Nossa ligação.


* Essa poesia, pequenina e singela, da qual tenho carinho especial, faz parte do livro "Negro Rom" de Lessa e Peu.

domingo, 22 de agosto de 2010

Gorillus morbiddus

Me dê um beijo meu amor
Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes, as estátuas
As vidraças, louças
Livros, sim...

Caetano Veloso - Proibido Proibir


Após uma semana de divulgação do livro Negro Rom fui flagrado desejando, ignobilmente, sofrimento, dor e sangue. Calma. Era um desejo situado, unicamente, no plano voyeurista. Nada de materializações.

Curiosamente esse afã, mesmo nos cidadãos mais pacatos, se manifesta com relevante freqüência. Quem nunca desejou quebrar o que (ou quem) estava pela frente? É um resquício de nossa descendência símia, não há que se envergonhar, acho...

O final de semana chegou e, acompanhado dele, o espírito simiesco desejoso de poder. No meu caso o poder era irrelevante, só queria mesmo alimentar uma espécie de sadismo irreverente, que se fazia tão presente quanto imponente.

Começou no sábado com Abel Ferrara e seu primeiro filme independente, o despretensioso (e de baixíssimo custo) “Assassino da Furadeira” (1980). Quem conhece Ferrara sabe o que esperar. É agora, pensei. Um filme que fala sobre a linha tênue que nos separa da insanidade. Fui agraciado com banhos de sangue, e uma violência aparentemente sem propósito, mas não: eu entendia aquela violência, aquela raiva, aquela furadeira elétrica destruindo miolos, espalhando catchup como manda a receita dos mais consagrados filmes B. Beleza.

Confesso que deu uma relaxada, mas meu primata interior queria mais. A noite chega, e o domingo também. Descobri passando na TV o filme “Sexta-feira 13” (2009), o novo que não é remake. “Vamos lá macaquito, você tem a força”.

Sou fã do Jason, mas esse filme me fez dormir... Logo no início uma mulher siliconada, doida pra dar, mostrou os seios, mas nem isso foi legal... Mais fraco que o Sexytime, do Multishow, pelo amor de deus. Mortes bobas, com cheiro de coisa sintética.

A produção mais rica toma o lugar da independente. A independente, geralmente, é discriminada por ser... independente! E o macaquito, como fica? E o macaco, caralho?!

Ferrara, diferente, inteligente, pouco conhecido e com baixo orçamento conseguiu alimentar o Neanderthal que há em mim. Já o Jason atual, de Michael Bay, só o adormeceu. De uma certa maneira isso foi esclarecedor: se até um macaco consegue reconhecer qualidades na diferença, para um ser humano isso também não deve ser difícil.

domingo, 15 de agosto de 2010

Negro Rom - (J.C.Peu e A.Lessa)

Capa: Thiago Miranda de Oliveira.


Depois de muitas citações neste blog, e uma semana sem postagens...


Negro Rom, de José Carlos Peu e Alexandre Lessa, é publicado pelo Clube de Autores!

Um projeto iniciado em 2003, engavetado em 2005, e agora, após uma série longa de revisões, vem a público em 2010!

O livro é composto por poesias de temas diversos, mas com um objetivo em comum: discutir sobre a alteridade (reconhecimento da diferença).

Os colegas leitores da "Secretistas" acompanham nossa missão pedagógico-literária de apresentar um trabalho livre de preconceitos, e pró-alteritário. Negro Rom é anterior, embora com lançamento posterior, a tudo isso.

Negro Rom é o pai tímido deste blog. Severo, amável, poético e secretista. Um sonho bom de liberdade artística e literária.

Link no Clube de Autores: Negro Rom (J.C.Peu & A.Lessa); 1ª Edição. Rio de Janeiro. Clube de Autores, 2010.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Racismo à Brasileira

(José Carlos Peu)

Recentemente tenho escrito crônicas sobre o racismo partindo, porém, de minha própria vivência. Alguns amigos teceram comentários sobre meus escritos, alguns elogiosos, outros nem tanto. Nesta crônica, me proponho a aprofundar mais este mesmo tema, e ao mesmo tempo responder alguns comentários que recebi. As respostas estarão espalhadas por todo o texto.

Florestan Fernandes disse, numa frase lapidar, que a sociedade brasileira desenvolveu o preconceito de ter preconceito. Pesquisas recentes comprovam isso ao mostrarem que 89% dos brasileiros concordam que o Brasil é um país racista, mas, menos de 10% das mesmas pessoas que reconhecem este fato se auto-declararam racistas. A pergunta que os pesquisadores estão até agora se esforçando para encontrarem a resposta é: Como pode um país ser racista sem a existência de cidadãos racistas?

Na realidade, o preconceito existe, e é facilmente observável se atentarmos às seguintes questões: Se o número de negros e pardos é de 49% da população brasileira, por qual motivo o percentual de jovens negros e pardos no ensino superior é de apenas 2%? Se a Bahia é o estado com o maior número de negros no Brasil, por qual motivo as maiores cantoras do principal ritmo musical baiano, o axé, são brancas? Se o número de jogadores de futebol negros é tão elevado no Brasil, por qual motivo o número de técnicos de futebol negros é tão diminuto?
Qual a explicação para o fato de termos tão poucos apresentadores (as) de programas de televisão negros num país onde, repito, 49% da população são negros e pardos? Qual a explicação para o fato de que 99,9% dos comerciais de automóveis serem protagonizados por pessoas brancas? Paremos por aqui, posto que mais detalhamentos desta vergonhosa situação é extremamente cansativa tanto para mim, quanto para quem vier a ler esta crônica.

Antes de responder a qualquer dessas questões, meditemos em outra, por qual motivo um número enorme de pessoas continuam dizendo que não existe preconceito no Brasil? Dentre tais pessoas, até mesmo vários negros e pardos procuram defender a tese de que não existe racismo no Brasil. Um sociólogo francês, chamado Pierre Bourdieu, morto no ano de 2002, pode nos ajudar a entender um pouco por que se dá tal fato. Entre as muitas de suas contribuições encontramos um conceito bastante trabalhado por Bourdieu, o conceito
de violência simbólica. De que se trata? De forma resumida, a violência simbólica é um tipo de violência onde a vítima não consegue perceber que sofreu um ataque a sua dignidade. É
uma imposição dissimulada de um capital cultural imposto como superior a todos os outros capitais culturais, que nem mesmo conseguem perceber a dominação sofrida. É importante entendermos que este processo tem de ser dissimulado sempre, caso contrário a violência não será simbólica, sendo, também muito mais fácil de ser combatida. Da mesma forma, a vítima da violência não pode perceber este processo.

O preconceito no Brasil é assim, dissimulado, onde a maioria das pessoas que o sofrem não conseguem perceber, e onde um capital cultural de uma elite branca é imposto sobre todos os outros capitais culturais. Apenas muito recentemente na sociedade brasileira a questão do
preconceito se tornou parte dos principais debates na sociedade. Isto é bom, posto que se uma pessoa que sofre com fortes dores de cabeça, ou de depressão profunda, não se reconhecer como alguém que padece de um sério problema e que precisa de algum tipo de tratamento, dificilmente se verá livre de sua doença, ou pior que isso, poderá sentir na pele o agravamento de sua situação.

Se temos algum tipo de preconceito, o melhor que temos a fazer é enfrentar isso por meio de mais informação sobre a nossa situação. Não adianta nada ter preconceito de ter preconceito. Geralmente este remédio simples, mais informação de fonte confiável, consegue combater os principais sintomas desta doença.

José Carlos Peu. 08/2010.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Ficção Científica

(José Carlos Peu)

Até meados da década de 1990, ‘2001, Uma Odisséia no Espaço’, ‘Blade Runner’, ‘Star Wars’, eram considerados ‘clássicos’, o que melhor se fez no cinema de ficção científica. Com um ou outro título sendo acrescentado ou retirado desta lista dos melhores, exemplo de ‘E.T. O Extraterrestre’, ‘Laranja Mecânica’, ‘Contatos Imediatos do 3º Grau’, ‘O Dia em Que a Terra Parou’, ‘O Planeta dos Macacos”, etc, tudo já estava definido. Parecia que tudo era um fato consumado e que nada de importante surgiria. Porém, esqueceram de avisar isso a Andy e Larry Wachowski, e eles lançaram em 1999 ‘Matrix’, filme que tornou-se a ‘pedra de toque’ de todos os outros filmes de ficção científica por um bom tempo.

A importância de uma obra de arte não pode encerrar-se em si mesma. Tal importância reside, em minha opinião, muito mais na capacidade de influenciar outras obras de arte em seu ramo e, até mesmo, influenciar obras em outras mídias. Neste quesito, é fácil entendermos a importância do filme ‘Matrix’ para a cultura, seja ela pop ou não. Este filme influenciou o cinema, posto que a maioria dos filmes posteriores se parecem um pouco com ele. Mas influenciou também quadrinhos, séries de TV, literatura, e até universidades. Não falo apenas dos cursos de filosofia, lembro-me bem de uma aula de antropologia da educação onde o professor discutiu ‘Matrix’ com a turma ao explicar o conceito de realidade pouco antes de indicar um texto do antropólogo Gilberto Velho.

Se tais coisas não são o bastante para atestar que ‘Matrix’ é um dos maiores filmes de ficção cientifica de todos os tempos, o melhor desde ‘2001, Uma Odisséia no Espaço’, e um grande abre-alas para o século XXl, eu não sei mais o que poderia ser o bastante. Darren Aronofsky deu, um pouco antes de lançar ‘The Fontaine’, uma entrevista que dizia que no momento em que assistiu ‘Matrix’ ficou muito triste, pois pensava em filmar uma grande história de ficção
científica, mas, depois de ‘Matrix’, nada mais fazia sentido. Por muitos anos ele tentou escrever um grande roteiro de ficção, até que escreveu ‘The Fontaine’, que segundo ele era o mais espetacular filme de ficção cientifica desde ‘Matrix’. Apesar da brilhante atuação de Hugh Jackman como protagonista da história, quem se lembra do filme ‘The Fontaine’? Eu dou uma ajudinha, o título no Brasil foi ‘A Fonte da Vida’. Alguém se lembra?

O ‘efeito Avatar’ ainda não é plenamente conhecido, mas, ‘Avatar’ não foi o grande filme que todos esperavam que fosse. Mesmo que represente um grande avanço tecnológico, este filme não foi realmente um grande representante na galeria dos filmes de ficção científica. Um filme muito mais barato/simples que ‘Avatar’, e que apresentou um grau de originalidade muito superior foi ‘Distrito 9’. Idéia extremamente original, e com um viés social muito acima da média da maioria dos filmes de ficção cientifica recentes. Novamente digo, em minha opinião, ‘Distrito 9’, de Neill Blomkamp, é o melhor filme de ficção científica desde ‘Matrix’. Uma das grandes qualidades de ‘Distrito 9’ era a mistura de ficção e documentário. Esta técnica, quando bem utilizada, produz um efeito de potencializar a sensação de realidade
nos espectadores do filme. Um filme espetacular que utiliza muito bem esta mesma técnica é o curta ‘Recife Frio’, de Kleber Mendonça Filho, que trata de uma inexplicável mudança climática que faz cair neve em pleno Pernambuco. Este filme é altamente recomendável.

Hoje sabemos que a história é cíclica, e que recomeça a cada instante. Não há motivos para nos fecharmos na velha concepção do que era ‘clássico’, e do que era ‘descartável’. O novo está sendo criado, agora, neste momento, que venham novas histórias!

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Linguagem e Exclusão


“Tem alguma coisa estranha no jeito como você pronuncia as palavras. Você é nordestino?” – Essa pergunta me foi feita por uma amiga num estágio. A minha esposa, também, costuma rir de algumas pronúncias que ela diz serem muito arrastadas. É somente natural que eu carregue o sotaque nordestino na maneira de pronunciar algumas palavras.

A minha família é natural do município de São Lourenço da Mata, em Pernambuco, e veio para o Rio de Janeiro quando eu tinha apenas dois anos de idade. Criado por pais nordestinos e rodeado por tios, tias e sobrinhos com o jeito nordestino de falar, era inevitável que em
algumas palavras as minhas origens se fizessem mais presentes do que em outras.

Notamos que os grandes grupos culturais, mesmo dentro de um mesmo país, diferenciam-se e isolam-se em suas relações. Os signos lingüísticos de maneira geral refletem as diferenças e desmascaram domínios de códigos dispares. “Apesar de pertencermos a uma mesma ‘comunidade semiótica’, há uma diversidade de domínios lingüísticos devido à diversidade das várias regiões que compõem o território brasileiro, onde predominam linguajares com suas características próprias.” (FERREIRA, 1999)

Tratando especificamente da linguagem oral, é inevitável não percebermos a linguagem como porta-voz da exclusão. As pessoas que vão das zonas rurais para os grandes centros urbanos
são geralmente encarados como miseráveis, despreparados, sem cultura, muitos chegam a dizer que tais pessoas ‘nem sabem falar’. É como se a forma como tais pessoas falam não possui valor algum já que não falam como ‘nós’. Deste ponto até a generalização é apenas um passo. Qualquer pessoa que não fale como os citadinos das grandes cidades do Sudeste, o padrão lingüístico para o restante do Brasil, são logo acomodados em grandes grupos tais como ‘paraíbas’, ‘baianos’, ‘mineiros’, etc. Notamos, também, que os sotaques das regiões mais ao
sul são apenas exóticos, enquanto os sotaques das pessoas do Norte e Nordeste são tratados não apenas como exóticos, sendo bastante estigmatizado.

A linguagem, cada vez mais, tende a excluir pessoas que estão fora dos seus grupos culturais de origem e não dominam os códigos lingüísticos do grupo cultural que visam integrar-se, o grupo dominante. Mas, a linguagem, deveria servir para a união dos homens e não para a exclusão. Este é o desafio que, mais do que nunca, se nos apresenta.

Bibliografia:

Ferreira, A. P. O Migrante na rede do outro. Ensaios sobre alteridade e subjetividade. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Editora TeCorá, 1999.

José Carlos Peu, 19 de Julho de 2010. 22:11 h.

domingo, 18 de julho de 2010

Âmbar

(J.C. Alcantara)

Não sou branco
Sou franco,
O negro é pranto,
E, o pranto ecoa pelo tempo,
Lúgubre, lúgubre.

Sou negro,
Sou homem,
Mas, se fosse branco,
Seria um homem
Assim como sempre fui.
Isto está juramentado
E ajuramentado,
Aresto, aresto.

Sou um homem
Como todos os outros.
Não digam o contrário,
Nem criem barreiras!
Uma criança nasce chorando e gritando:
“Acesso, acesso!”

* Poesia extraída do livro "Negro Rom", de Alcantara e Lessa. Em breve publicado pelo "Clube de Autores".

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Banquete dos Mendigos


(A. C. Andano)

Oh, antíteses! Que trazeis hoje?

Um banquete de mendigos?

Um molusco bonachão?

Um cidadão solidário?

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!

Traga-me tudo! Estou faminto...

Não há nada melhor que retornar sabendo que é definitivo...
Então, sem temor, relacionemos os três objetos acima. Sim, eles têm muito em comum!

O Banquete dos Mendigos...
Sempre pensei que fosse mentira da oposição, mas há mendigos que fazem sopa de jornal com pedras... Que bizarro! Nunca vi um mendigo saboreando uma dessas, mas um colega me garantiu que é verdade!
Enquanto isso o que temos “dando sopa”? Nosso Molusco Bonachão, claro!! Ele não só fala, como dirige um país! É um primor, e especialmente competente com as palavras! Recentemente defendeu de forma ímpar seu povo contra uma grande entidade desportiva, ele gritou em plenos pulmões (sic, o meu molusco tem pulmão): “Acham que somos um bando de idiotas”.
Não, não acham... Eles têm certeza... E talvez, trocando pelo silêncio, até queiram dividir os lucros do superfaturamento com as obras emergenciais para 2014. Ah, obras que serão pagas pelo ilustre cidadão solidário! Obrigado, cidadão!

Poucos conhecem, mas Banquete dos Mendigos, também foi nome dado a um projeto dirigido por Jards Macalé (o Jards de novo, mas ele merece toda a atenção). O banquete tratava-se de um show comemorando os 25 anos da Declaração dos Direitos Humanos... em plena ditadura militar! Cantores renomados, como Paulinho da Viola e Milton Nascimento, participaram do evento que intercalava músicas e leitura de artigos da declaração.
Naquela época, somente militares podiam ser presidente. Não era permitido imaginar um molusco no poder, quem dirá bonachão! E o cidadão não só era solidário, como subjugado.

Jards foi preso diversas vezes, porque, afinal de contas, lugar de banquete não é no estômago de mendigos.

E então, antíteses? Seria o mundo de hoje melhor que o de ontem?

Hoje podemos escolher o tipo de animal que queremos para presidente. Difícil é distinguir qual deles é humano.

Hoje o cidadão solidário tenta o Habeas Corpus de um total desconhecido. Difícil é usar essa motivação pra algo que preste.

Hoje podemos escolher entre um Banquete dos Mendigos, e uma sopa de jornal com pedras... difícil é não perder o apetite antes...

* A imagem acima é a capa do vinil "Banquete dos Mendigos, (1973)", encontra-se originalmente no endereço da web: http://300discos.files.wordpress.com/2009/08/cc26-jards-macale-o-banquete-dos-mendigos.jpg?w=295&h=300

sábado, 10 de julho de 2010

Racismo em Debate

(Peu)

Temo parecer repetitivo ao escrever nova crônica sobre o mesmo tema,
apenas uma semana após “Sobre como me tornei racista”. Porém, não sou eu que me repito, são os acontecimentos que se repetem, e se não pararmos um pouco para refletirmos sobre eles, parecerão mais um dos absurdos normais do dia-a-dia. Não podemos nos calar.

Sábado passado (03/07/2010), eu estava a conversar banalidades com meu cunhado, J., irmão de minha esposa, quando fomos interrompidos pelo seu filho, L., que tinha algo muito importante para nos dizer. Paramos para ouvi-lo, mas o que ouvimos não eram palavras de um
adolescente negro de 13 anos de idade. Eram palavras de outras pessoas, que por algum motivo, acabaram caindo na boca do L. O que ele nos disse era “apenas uma piada”, na sua concepção, “não precisava ser levado á sério.”

“Um garoto da escola me disse que a mãe dele tinha lhe dado á luz, mas que a mãe do fulano, um garoto lá da sala, tinha dado um curto-circuito.”

O L. não conseguia parar de rir enquanto nos contava
a ‘piada’. Pouco tempo antes, em um dos vários estágios que realizei para concluir o curso de Pedagogia, escutei um menino ‘moreninho’ contando para um grupo de amigos uma piada que dizia que um rapaz havia se machucado e foi a uma farmácia comprar um esparadrapo da cor da pele. O farmacêutico pediu-lhe desculpas, mas, por aquele estabelecimento não ser uma loja de materiais de construção, não vendia ‘fita isolante’.

A Lei 10.639/03, e mais recentemente a Lei 11.465/08, versa sobre a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura da África no currículo dos estabelecimentos de ensino públicos ou particulares. Penso que as escolas só vão se esforçar para cumprirem esta lei quando estes conteúdos forem requisito para as provas do vestibular.

Mas, voltando ao L., o que a escola está ensinando aos nossos jovens eu não sei, mas tive que dizer ao L. que esta piada era racista.

“Eu
sei!” - disse L. sem parar de rir. Neste momento o seu pai falou: “Você é preto (se referindo a mim), eu sou preto, ele é preto, vem contar uma piada dessas e quando alguém fala que é racista ele diz que sabe, mas continua rindo...” L. se afastou de nós com um sorriso um pouco forçado, provavelmente não esperava que sua piada resultasse num ‘sermão’.

O fato de que o L. deve me considerar apenas um ‘moreninho’ fez com que pensasse que eu iria gostar da sua piada. Eu pensei em não falar nada, em deixar que seu pai falasse. Mas, penso que se eu calasse, J. talvez calasse também. Mesmo que ele não desse atenção e não sorrisse, como de fato não sorriu, se ele calasse deixaria de passar uma lição para seu filho, um valor.

Questões raciais são mesmo algo espinhoso. Na verdade, tanto a escola como praticamente todas as outras instituições da sociedade, não estão ensinado nada, estão calando-se no que tange a questões raciais, de modo que quem se pronuncia fica parecendo apenas um chato, um
panfletário, um radical, um fanático. É claro que sempre há exceções. Existem muitas brechas e aberturas que possuem a possibilidade de se tornarem portas abertas para o debate, mas é necessário que não nos calemos. Toda a sociedade, brancos, ‘moreninhos’ e nós negros, devemos aproveitar para nos inserirmos neste debate, que visa a criação de uma sociedade mais igualitária. Neste ponto, aproveito para lembrar que a Lei 11.465/08 inclui, também, o estudo da história e da cultura indígena na formação do Brasil como tema obrigatório no currículo escolar.

Mais uma vez, não nos calemos!


José Carlos de Alcantara, 08 de julho de 2010, 08:30 da manhã.

sábado, 3 de julho de 2010

Sobre Como Me Descobri Racista

(Peu)

Na última sexta-feira, amanhã fará exatamente uma semana, me descobri racista. Digo me descobri, mas deveria dizer que me desmascararam. Eu e minha esposa fomos numa cerimônia de casamento. Ela estava "um pouco" a trabalho, visto que é cabeleireira; estava preparada para imprevistos, principalmente com a dama de honra. A dama, uma menina de
9 anos, que durante a cerimônia ficou do lado de fora num carro esperando a hora de entrar com as alianças.

Eu fotografava a menina, enquanto um de nossos amigos, brincando, pegou as alianças da menina e pediu para que eu o fotografasse. Sua esposa falou de forma ríspida censurando-o: “W. você já é preto, não precisa ficar dando escândalo para aparecer.” Tive que me intrometer, disse-lhe: “Falando desse jeito você me ofende!” Eu, sinceramente, não estava preparado para a declaração seguinte: “Que isso Zé Carlos, deixa de ser racista. O W. é muito mais preto que você! Você é marrom bombom. Dizer que você é preto é racismo. Você tem de se aceitar como moreninho!”

Para mim este discurso foi algo novo. Eu me descobri racista, pois não me aceitava como uma pessoa morena, reivindicando minha negritude. Resolvi que não valia a pena correr o risco de estragar a cerimônia religiosa, explicando e me autodeclarando negro.

No fim de semana, não lembro exatamente se foi no sábado ou no domingo, no intervalo de algum jogo da copa do mundo de futebol transmitido pela Rede Bandeirantes, assisti uma propaganda dos postos Forza, onde um homem de fenótipo negro dizia ser muito importante que as pessoas escolham o melhor para si. Ele explica que sempre escolhe os melhores materiais para o seu negócio, para seu escritório. Até este momento, a cena se concentra apenas no rosto do homem. Depois que ele começa a concentrar sua fala no escritório, a cena abre para que possamos ve-lo. A imagem que surge é a de um táxi sendo abastecido no posto Forza.

O que me chamou a atenção neste comercial foi que passava a idéia de que o personagem vivido pelo homem negro era uma pessoa bem sucedida, tanto que possuía seu próprio escritório, seu próprio negócio.

Infelizmente, o anuncio meio que delimita as possibilidades de um homem negro, indicando que seu lugar social, de negro bem sucedido, é o volante de um táxi. Mais uma vez me veio à cabeça a declaração da esposa do meu amigo W. que resolveu me contar que sou
racista.

Nesta terça-feira (29/06/2010), atendi na biblioteca da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, onde realizo estágio de Pedagogia, um homem que solicitou um roteiro do Cacá Diegues para tirar algumas Xerox. Pedi que deixasse um documento seu, como de praxe, mas quando ele retornou conversamos bastante sobre cinema. Ele me mostrou fotos do seu celular dos bastidores das filmagens do filme ‘Os Mercenários’, do Sylvester Stallone. No meio da conversa, ele comentou sobre um ator negro de um seriado policial que se passa em São Paulo, e que ele conheceu recentemente. Ele disse que o cara era mais negro que eu. Eu não era negro, era apenas mulato. Apenas mulato. Isso é frustrante. A única coisa que me deu um pouco mais de alento nesta conversa foi que ele disse, também, que Barack Obama não era negro. Ambos, eu e o Obama, éramos moreninhos.

Numa única semana, três ocasiões distintas onde minha identidade negra foi questionada, ou ultrajada, com uma limitação de possibilidade profissional. Foi uma surpresa que a rede Forza não tenha apresentado um negro bem sucedido na sua carreira profissional como um frentista.
Enfim, eu era racista. Eu e o Obama éramos apenas moreninhos, e o mundo, o mundo é perfeito.

*Crônica escrita no dia 01/07/2010, 01:55 da manhã.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 7ª Parte (FINAL)

Carla foi levada para casa pela própria diretora e, do interior do carro, olhava os homens armados que impediam o direito dos homens desarmados ir e vir, vir e viver. Num esforço descomunal, verteu lágrimas como sacrifício em favor dos pecados do mundo. Ela como que
torcia sua retina em busca de mais algumas gotas de lágrima. Já havia chorado muito naquele dia, parecia não ter mais gota alguma de lágrima em seus olhos. Sentia-se cansada. Não lutaria mais contra o mundo á sua volta. Sentia-se pronta para conformar-se com o mundo à sua volta
passivamente. Chegou á conclusão que sua luta muda contra o sistema, inevitavelmente, resultaria em derrota.

Ao descer do carro na entrada da comunidade onde morava, não queria ter de responder perguntas sem sentido, e mesmo que estivesse decidida reagir ao mundo de forma passiva, poderia começar a agir assim no dia seguinte. E, quando os bandidos puseram-se em seu caminho e lhe perguntaram “em quê o movimento de contracultura tinha contribuído
para o pensamento de responsabilidade social das empresas transnacionais”, Carla não suportou a hipocrisia do mundo e deu um grito com todas as forças que lhe restavam. Libertou de uma só vez toda a insatisfação de ser cerceada no que tinha de mais precioso, sua liberdade. Sua insatisfação quase se fez um objeto concreto ao atingir os homens armados parados á sua frente.
- Saiam da minha frente, seus abutres! Não responderei ás suas perguntas descabidas! Monstros! Imbecis! Entrar em minha própria casa sem dar satisfações é meu direito! Nunca mais vou responder pergunta alguma! Liberdade ou morte!

No momento em que estas palavras foram articuladas pelos músculos na garganta de Carla, a terra parou em seu eixo e, junto com ela, pararam todas as pessoas que passava ali naquele momento. Todos ficaram na expectativa de verem como seria a reação dos facínoras. Algumas
mulheres de idade indefinida com lenços coloridos na cabeça e vestido de chita começaram a chorar e se bater em lamento, como aquelas matronas do Oriente Médio, na verdadeira Faixa de Gaza, que choram e se batem quando o exército de Israel mata seus jovens, que segundo elas, não tinham envolvimento com o terrorismo. As mulheres daqui sofriam por antecedência o fim, que davam como certo, da pobre mocinha que ousava desafiar o tráfico. Mas, sabemos que lei é lei, e nenhum meliante ali seria tolo o bastante para desobedecer a uma lei do chefe do tráfico. Assim, nada aconteceu. Nunca mais pararam Carla ao entrar ou sair da comunidade. Era do grito de liberdade que ela precisava para que o nó que sentia na garganta fosse desfeito. De certo que tudo o que podia conseguir era uma pseudoliberdade amorfa, mas, já era algum começo. Melhor uma liberdade ilusória do que nenhuma esperança.

Os dedos indicadores e mandíbulas continuaram a visitar os sonhos de Carla por muito tempo. Os zumbis de jaleco se tornaram monstros cada vez mais pavorosos, e ela acordava desejando nunca ter ido ao Anatole naquele dia fatídico. Anatole, Anatole! Pobre Anatole! Pequeno entre os grandes e eternamente relegado ao esquecimento. Nunca sairá de ti um doutor em literatura francesa, por exemplo. Mas, como já disse uma vez alguém muito especial: “improvável não é impossível!” Quem sabe algum dia Carla não mais sonhe, e homens não mais morram!

Dedicado à Eliane Costa.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 6ª Parte


A diretora era uma mulher de rosto redondo, mas, bela. Embora
estivesse envelhecendo e as marcas da passagem do tempo estarem se fazendo bastante visíveis, ainda era bastante sensual. Usava óculos como todos os professores deste mundo, e conseguia passar muita
confiança e ser persuasiva ao falar. Ao mandar Carla levantar-se e ir até o banheiro, conseguiu ser persuasiva. Disse que era para ela melhor recompor-se, e ir para sua casa, pois naquele dia não haveria aulas. Disse, também, que não se preocupasse com as horas do estágio, ela assinaria como se aquele tivesse sido um dia normal.

Quando saiu do gabinete, um dos sacripantas que a assustou ao vir em sua direção com um pequeno saco transparente com um dedo sujo de sangue dentro, desculpou-se pelo susto que lhe dera e lamentou o fato de que ela veio a desmaiar. Carla aceitou as desculpas, não era culpa do homem o fato de ela não estar preparada para ver um dedo decepado. Se o corredor estava mal iluminado, isso também não era sua culpa. Carla ainda estava meio tonta, e ao andar pelo corredor do colégio, mesmo que o prédio tenha passado por reforma recentemente, parecia que ela via musgo e infiltrações que vazavam água continuamente no teto e nas partes superiores de ambos os lados do corredor. Era como se tivesse entrado em um outro mundo, e nesse mundo estranho, a luz originava-se de velas em candelabros de cobre. As velas, com suas chamas bruxuleantes que deformavam todos os objetos que tocavam, produziam, pelo seu halo projetado nas paredes, sombras ameaçadoras num tom que misturava azul da Prússia com terra de Siena queimada.

A jovem sentia medo e questionava-se quanto a se dar o próximo passo era algo sensato. Sentia o suor escorrendo por seu rosto e por suas pernas. O seu coração estava acelerado. Seus olhos tentavam compensar a miopia, o astigmatismo e a escuridão por se dilatarem. Não sentiu o susto precursor do desmaio e, por este motivo, deu um passo incerto rumo à escuridão que se pronunciava infinita e inevitável. Antes de dar mais um passo, pensou que cairia num buraco, talvez numa masmorra. Pensou que estava num velho castelo medieval. Mas, resolveu dar o passo, posto que já fizera este percurso da sala da diretora até o
banheiro dos professores infinitas vezes e nunca, nem uma única vez, reparara na escuridão, no musgo, nos vazamento ou nas velas. Decidiu que não devia confiar completamente em seus olhos, e deu o passo rumo à escuridão infinita. Se viesse a cair, era porque sonhava, e se
estivesse sonhando, acordaria deste pesadelo em sua casa, com toda a proteção que uma cama pode proporcionar.

Ao dar um passo após outro adentrando na escuridão, Carla percebia que a luz, ou o alcance dela, era ritmado pelos seus passos. Á medida que dava um passo à frente, a escuridão retrocedia, também, um passo. Consequentemente deu um passo após outro, dançando pelo corredor, forçando a luz a bailar com ela no ritmo que escolhesse. Um passo em salsa, outro em valsa, um terceiro em bolero ou ragtime.

Ao chegar ao banheiro não mais sentia tanto medo quanto antes. Abrindo a porta, sentiu um cheiro ocre, que por um segundo associou ao odor do vinagre, mas, no segundo seguinte, desconfiou que não era exatamente vinagre o cheiro que sentia. Não havia muita luz no banheiro e Carla abriu a porta com a mão esquerda e, sem demora, com a mão direita
tentou encontrar o interruptor que faria o favor, se alcançado, de iluminar todo o espaço ali. Não encontrou. “Coisa estranha. Havia um interruptor aqui ainda ontem, ou antes de ontem, já não lembro exatamente de mais nada.” – Pensou ela. A luz que entrava pela janela era parca e não iluminava quase nada. O chão do banheiro estava molhado, dava para ver o reflexo da luz que entrava pela janela refletindo no líquido no chão. Carla sentiu nojo, pois não sabia se a água era limpa ou suja, deveria ter cuidado para não sujar-se. Dava pisadas cautelosas no chão, como que pisando em ovos. Forrou cuidadosamente e com delicadeza o assento do vaso sanitário com papel higiênico. O odor nauseabundo do vinagre, ou de alguma outra coisa que não conseguia identificar, ficava mais forte ao passo que o banheiro ficava mais iluminado. O cheiro fez com que sua boca salivasse, o que aumentava o desconforto e impedia que fizesse suas necessidades com rapidez. Com a demora, teve mais tempo para
deslocar seus olhos míopes pelo banheiro, prestando mais atenção nos detalhes que anteriormente eram ocultados pela escuridão.

Levantou-se, pegou um tanto de papel e secou-se. Olhou ressabiada uma massa disforme que estava num canto do banheiro, em baixo da pia. Parecia ser lá a origem da água no chão e o odor de vinagre. Levantou a calcinha, abaixou a saia e ajeitou-se. Deu um passo em direção à
pia, fixou o olhar e, sim, teve a certeza que o que estava vendo era uma dentadura. “Achei um sorriso! Mamãe, achei um sorriso!” – Pensou ela, lembrando da pitoresca história da menina que achou uma dentadura e, em sua inocência, pensou ter achado um sorriso.
Mas, havia alguma coisa estranha com aquele sorriso. Estava sujo e enrolado no que parecia ser um pano de chão igualmente imundo. A luz que entrava pela pequena janela, iluminava preguiçosamente o pequeno banheiro. Carla, querendo aproveitar melhor a luz, tirou os óculos para limpá-los e assim poder examinar detalhadamente o sorriso que estava vendo ali no chão, bem á sua frente. Teve a impressão que o sorriso era para si. Depois de limpar bem os óculos, pensou que finalmente poderia ver o que havia ali. Recolocou-os com cuidado e assustou-se ao reconhecer uma mandíbula humana e uma arcada dentária completa. Fechou os olhos, mas, infelizmente, a imagem já havia sido capturada por suas retinas e jamais iria permitir que voltasse ao Anatole.

Haviam serrado, provavelmente com uma serra de cortar ferragens em construção civil, a cabeça de um rapaz na altura do nariz. Não avistara lábios e a pele da face havia sido retirada. Uma das orelhas estava pela metade, enquanto a outra estava intacta. Carla vomitou o que havia comido no café da manhã. Saiu correndo do banheiro e gritou por socorro, com todas as forças que haviam ainda em seu corpo. A primeira pessoa a atender seu pedido de socorro foi Rita de Cássia, a faxineira do colégio, que a abraçou maternalmente.

- O que foi minha criança? Não tenha medo, você não está mais sozinha.
- É horrível! É horrível! Lá no banheiro tem... – Calou-se, sem saber descrever exatamente o que acabara de ver. Dona Rita a deixou no chão do corredor, recostada na parede. A diretora, policiais e outras pessoas estavam se aproximando quando Rita entrou no banheiro para ver o motivo dos gritos, mas, saiu quase no mesmo instante gritando, desesperada, “Cruzes! Cruzes!” Ela não conhece latim, e mesmo se conhecesse, dificilmente sairia gritando
“Stauros! Stauros!” Mais ou menos no mesmo instante, num outro ponto daquela comunidade, o
dono da boca de fumo ordenou que tudo aquilo deveria parar.

- Não quero mais nenhum morto na minha comunidade. Um morto trás, em média, uns dois policia. Se o morto for um policia, ele trás uns dez outros policia e eu não lucro nada. Ninguém lucra com uma guerra na comunidade, nem a polícia nem eu. Ninguém sobe um morro pra comprar bagulho, pra gastar dinheiro, com medo de ser grampeado pela polícia ou com medo de levar um tiro na cabeça numa guerra de facção. Quem me desobedecer vai ser desovado no lixão. Espalhem essa noticia pra tudo o que é vagabundo, eu quero paz. Ninguém vai morrer na minha comunidade.

Simples assim, por decreto, a morte foi abolida na comunidade onde se localiza o colégio Anatole France. Para isso, até uma trégua foi feita com a outra facção. A notícia foi espalhada velozmente. Cada homem, rapaz ou menino que ouviu estas palavras foi contá-las para o primeiro homem, rapaz ou menino que encontrou pela frente. Esta corrente continuou a crescer até o ponto em que todos os seres vivos nas duas comunidades sabiam de todas as vírgulas da sentença.

No interior do colégio a mandíbula dentro do saco plástico parecia sorrir e, se sorrir fosse mostrar os dentes, era exatamente isso que faziam aqueles 30 dentes ensangüentados. Sorriam debochando de uma sociedade que já ultrapassou a barreira entre selvageria e civilidade há muito tempo, mas que não tinha coragem o bastante de admitir este fato.

Em breve:
* A 7ª parte (e última) da história de Carla Camuratti, por Peu.
** Mais uma crônica "desafinada" de Adriano C. Andano.
*** E uma edição inédita da "Animalia Sensual", por El Bailaor (quase pronta!!)
.

terça-feira, 11 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou um Sorriso - 5ª Parte

A rua era estreita e terminava num beco sem saída para carros a pouco mais de trinta metros após a entrada do Anatole France. Eram quatro ou cinco carros, contando com os carros dos legistas, que fechavam a rua não permitindo que outros carros tivessem acesso ao final dela. Nos telhados de alguns casebres ao redor do colégio, várias outras aves de rapina apontavam seus fuzis e metralhadoras para os policiais que esperavam nos carros. Quatro policiais entraram no colégio junto com os bombeiros, enquanto dois ficaram do lado de fora, um em cada carro.

Sentiam medo e encolhiam-se por estarem acuados dentro de veículos frágeis, que não apresentavam nem sequer uma sombra de proteção contra todos aqueles armamentos à sua volta. Ademais, os policiais sabiam que estavam em uma emboscada. Simplesmente não podiam acreditar como seis homens experientes, acostumados a subir morros, foram cair nessa
furada de entrar numa favela para acompanhar bombeiros e legistas. Na verdade, não entendiam nem mesmo por qual motivo se precisava de legista num crime como esse.

Sentiam-se como o rato na fábula de Kafka que corria desesperado para uma ratoeira no fim de uma sala onde duas paredes se encontravam e, no ponto privilegiado da armadilha, cantavam baixinho e tamborilavam com os dedos na porta dos carros. Não admitiam um para o outro o medo que sentiam, mas, era tanto que nem sequer ousavam ficar conversando em pé
fora dos carros. Eram dois policiais cercados por bandidos por todos os lados. Todo palco estava preparado para uma grande tragédia, e seria uma tragédia não terminar assim o dia. Era inevitável que o gato kafkiano lhes desse a sugestão de mudar de lado, para que eles
fugissem da ratoeira, só para devorá-los.

Havia pouco tempo que Carla estava estagiando no colégio Anatole
France. Os longos corredores do antigo prédio, recentemente reformado, mesmo que bem iluminados causavam-na sempre certa cisma. O medo ia embora na presença de outras pessoas que todos os dias eram quase uma multidão. Alunos, professores, merendeiras, faxineiros, inspetores,
etc... Neste dia específico, não havia alunos nos corredores. As aulas foram suspensas e muitos funcionários aproveitaram para não trabalhar e voltaram para suas casas. Os corredores estavam vazios, Carla caminhava temerosa contando seus passos como quem se apega à esperança de encontrar um tesouro, rumo ao gabinete da diretora. Queria perguntar se poderia ir embora, e se aquelas horas que deveria fazer naquele dia seriam descontadas. Caminhava vacilante quando da porta de uma das salas de aula saiu um homem vestido com um guarda-pó branco, onde se lia alguma coisa no bolso do lado esquerdo do peito, mas que
ela não conseguiu ler o que era. O homem vestia luvas de procedimentos médico-cirúrgicos e trazia na mão esquerda um saco transparente que continha em seu interior um dedo indicador sujo de sangue, mas já ressecado. O homem era da perícia e assustou-se, também, ao ver uma
jovem surgindo de forma inesperada em sua frente. Para aumentar o susto do homem, Carla gritou histérica como as mocinhas em filmes de terror quando estão prestes a morrer.

O grito de Carla ecoou por todos os corredores vazios, e seu eco entrou sem pedir licença poética em todas as salas de aula. No mesmo instante que ela virou-se para o lado oposto ao qual caminhava, visando correr para se afastar do legista, deparou-se com vários outros homens. Eram policiais e outros legistas, além do inspetor do colégio e da diretora, mas, a sua mente, perturbada com o susto que acabara de levar, via apenas vários outros homens vestidos com guarda-pó portando vários outros sacos contendo indicadores. Desmaiou.

Ao acordar, a primeira imagem vislumbrada foi o rosto rotundo da diretora bem perto do seu. Dizia de forma doce seu nome enquantopassava docemente as mãos em seus cabelos. Evocava calma, mesmo naquele instante tão delicado para uma demonstração de calma, ao pegar suas mãos e tentar lhe passar força. Com todo este carinho, foi lembrando pouco a pouco a causa do desmaio. Viu, novamente, como que num flash, os homens, todos saindo ao mesmo tempo das salas do imenso corredor, cada um com um saquinho com um indicador em seu interior. Suas pupilas se dilataram e ela olhou rapidamente para todos os lados. Estava muito assustada. Mas não havia homens nem dedos indicadores decepados naquele ambiente. Tais imagens
pavorosas davam lugar a armários-arquivos, paredes com quadros que reproduziam obras de Monet, alguns vasos com belos arranjos de flores, e o tom plácido em que foram pintadas as paredes. Agora, reinava novamente a paz.

Ficou a par de tudo o que acontecera, e envergonhou-se dos risos que acabou causando aos legistas e aos policiais. Tomou um copo de água com açúcar e começou a compreender que chacinas são coisas tão comuns quanto o ar que se respira, estando em todas as partes da cidade. Mas, nada disso era motivo para desmaios, nada disso é um fato social
significativo no subúrbio.

* Em Breve: O retorno de Animalia Sensual (por El Bailaor) e o início da saga Anti-Brasil na Copa 2010 (por Adriano C. Andano).

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 4ª Parte.

Nesta manhã Carla atravessou o pórtico de entrada da comunidade “A” e os sentinelas erguntaram-lhe o que eles haviam almoçado no dia anterior. Carla pensou um pouco e respondeu que um deles havia comido uma quentinha de ‘bife com fritas’ e o outro ‘frango com batatas’. Passou. Se acertou ou não a pergunta imbecil, não sabemos.

Carla andava pelas ruas principais da favela com o mesmo medo que sentia ao atravessar o caminho que ladeava o lixão. “Na comunidade também há urubus.” – Pensou ela ao ver que os biltres do tráfico tinham, quase todos, nariz adunco, pescoço esticado que projetava para
frente e não para o alto as suas cabeças e, o que ela considerava ser o pior, andavam todos com um andar característico que consistia em braços semi-abertos afastados do corpo, passada ritmada que provocava um movimento de sobe e desce da cabeça e, por fim, uma leve curvatura da coluna que os fazia parecer um pouco corcundas. Era, em suma, um bando de urubus.

Sozinha com o seu medo, ela andava olhando para frente ou para baixo, nunca olhava para os lados, pois evitava olhar para o interior das casas ou para os rostos das pessoas. As portas abertas das casas sempre desvelavam o que deveriam ocultar. Eram mulheres descabeladas
que passavam todo o dia cuidando das crianças e das demais tarefas da casa vestidas o dia inteiro com suas roupas de dormir. Homens sem camisa e com bermudas sempre caindo, em resultado de usarem números mais altos que os seus. Crianças sempre sujas que pareciam multiplicar de número a cada vez que desviava o olhar. E, o que era o pior de tudo, homens com bermuda caindo revelando seus pêlos pubianos junto com mulheres em roupas de dormir leves e transparentes. Realmente era melhor não olhar para dentro dos casebres.

Sentia-se sozinha, também, quando precisava desviar das motos. Muitas eram conduzidas por pais de família que ganhavam a vida levando as pessoas de um lado para o outro, mas, muitas outras eram conduzidas por olheiros, aviõezinhos e pelos garotos que eram chamados de vapor.

Nas calçadas, havia as tias que vendiam balas e doces, os tios que vendiam legumes e verduras e os garotos que faziam das ruas um mercado de negociação de drogas. Carla nunca quis acostumar-se em ver uma fila de vários fuzis encostados em fila nas paredes, como se fosse uma vitrine. Para ela, se num determinado dia acordasse e estivesse acostumada, acomodada com esta situação, o seu mundo teria acabado.

Desde que era uma garotinha bem pequena, quando sentia muito medo, cantava para espantar todos os males ao seu redor. Sempre quando passava no meio da comunidade sentia uma verdadeira necessidade de cantar. Queria cantar para esconder que estava com medo. Todos os dias sentia medo ao fazer este mesmo trajeto em direção da escola onde fazia seu estágio. Então, Carla deixou que soasse em sua cabeça uma das canções infantis que sempre cantava para as crianças em sala de aula. À medida que a letra da música dançava em sua cabeça, ouvia as vozes das crianças cantando. E, ao ouvir o som das vozes cantando a musiquinha infantil, o seu medo se dissipava, pois pensava não estar mais sozinha. É natural que assim fosse, posto que todos os medos que sentimos perduram apenas enquanto pensamos única e exclusivamente neles. Ela imaginava que qualquer pai ou mãe que precisava sair ainda de madrugada para trabalhar e tinha que deixar seus filhos sozinhos, deveria passar o dia inteiro cantando para espantar o medo que sentissem pelo bem estar de suas proles. Se bem que todos estão sozinhos quando há uma invasão da polícia, do exército ou de bandidos
de fora da comunidade.

A sorte de Carla é que, ao cantar, não percebia o quanto caminhava mais rápido e, constantemente, chegava até o Anatole em menos tempo do que se caminhasse calada, em silêncio. Ao chegar à proximidade do Anatole, percebeu que algo não estava indo bem. Havia uma movimentação muito grande de pessoas, dois carros de polícia e um rabecão dos bombeiros bem em frente da entrada principal do colégio. Foi a Ritinha, faxineira do colégio, que recebeu Carla no portão. Havia muito reboliço, muita agitação, e as coisas que Ritinha
dizia saiam atropeladas e se amontoavam, não dando tempo para que Carla entendesse bem o que havia acontecido. Tudo o que ela pôde assimilar foi que algo ruim havia acontecido. Em seu rosto, a serenidade que a música lhe deu foi sacudida pelas palavras atropeladas da Rita.

- Não vai haver aula hoje, filhinha. – Disse Rita com um sorriso amistoso, tentando se antecipar à pergunta que Carla faria inevitavelmente.
- O que aconteceu? – Perguntou Carla, deixando evidente que tudo o que
lhe foi falado anteriormente havia sido em vão.
- Eu já não lhe disse filha?

Dona Rita envolveu os ombros da jovem com os seus braços e disse, em sussurros quase inaudíveis, que dois homens foram mortos dentro do colégio durante a noite anterior. Rita revelou, também, que estavam comentando que os mortos deviam quantias irrisórias ao tráfico, e que os policiais que entraram na comunidade foram escoltados pelos abutres que estavam circulando a todo instante na frente do Anatole armados com armas que apenas especialistas sabiam o nome.

domingo, 2 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 3ª Parte

Vencida a barreira do caminho das torres, Carla sentia medo, também, de passar pelos homens armados na entrada da comunidade “A”. Para entrar lá, qualquer pessoa, tinha de responder a perguntas que os bandidos faziam. O que era estranho é que o medo que os bandidos sentiam de serem surpreendidos por outros bandidos da comunidade vizinha, levava-os a bolarem perguntas sobre toda a sorte de coisas e de todo grau de dificuldade. Parecia que se uma pessoa fosse capaz de responder às suas perguntas, não havia a possibilidade de que tal pessoa ser um bandido.

Certa vez, um rapaz muito bonito, bem vestido e estiloso na aparência, cruzou o pórtico que havia na entrada da favela e foi parado por dois sentinelas armados, que lhes perguntaram, note só, os nomes de todos os jogadores da seleção brasileira de futebol na copa do mundo de 1970 em ordem alfabética. Os biltres ficaram boquiabertos quando o jovem, com toda a elegância do mundo, começou a alistar um a um os nomes dos jogadores. Várias pessoas que esperavam sua vez de serem alvejadas com perguntas descabidas que cerceavam seus direitos aproveitaram para entrarem na comunidade enquanto os bandidos ficaram distraídos com o grande feito memorialístico do jovem rapaz.

Lembro-me, perfeitamente, de um entregador de contas de luz que toda vez que entrava na comunidade era perguntado sobre o nome e o sobre-nome de todos os moradores que receberiam suas contas. Todos os dias o homem respondia bem no início, mas por volta do trigésimo ou do quadragésimo nome, sua memória começava a falhar. Era uma realização hercúlea conseguir gravar os nomes de 825 clientes da concessionária. Os bicheiros começaram a organizar apostas, primeiro se o homem alcançava 50 nomes, depois 70, até que quando o entregador alcançou 100 nomes, um apostador recebeu uma bela quantia em dinheiro.

Houve um dia, porém, que para surpresa de todos, o homem respondeu de forma exata todos os nomes dos clientes que moravam naquela localidade. Muitas pessoas suspeitam até hoje de alguma fraude, ou algum ato de astúcia utilizado pelo homem, mas o fato é que ele conseguiu falar os nomes de 825 pessoas. Mesmo pasmados com o grande feito do entregador, os malandros continuaram mostrando quem mandava no pedaço. Disseram ter perguntado quantos clientes receberiam suas contas e, segundo eles, a resposta exata era ‘quantos eles permitissem’. O que era verdade. O pobre homem poderia continuar tentando, mas imaginou que seria inútil ir contra a burocracia do tráfico. Voltou as costas à entrada da favela e caminhou desolado até o ponto de ônibus mais próximo. Ao avistar o seu ônibus, fez sinal com as mãos para que parasse, entrou nele e nunca mais foi visto por ninguém. Provavelmente perdeu o emprego. O fato é que outros entregadores de contas de luz surgiram, mas nenhum deles persistiu por mais de uma semana na tentativa de decorar nomes. Era por isso que ninguém na comunidade pagava luz.

Para Carla as perguntas nunca eram tão difíceis. Já lhe perguntaram muitas coisas antes. Perguntas sem nenhum cabimento, que a faziam refletir por qual motivo as pessoas se sujeitam a esta forma de cerceamento de sua liberdade. Certa vez perguntaram-lhe qual era a diferença dos termos ‘complexo’ e ‘complicado’ segundo o pensamento de Morin. Mais estapafúrdia foi a pergunta “qual o nome do conto de Borges em que um personagem diz ‘o fator estético não pode prescindir de um certo elemento de assombro’?” Desde quando selvagens que torturam e matam com requinte de crueldade conhecem a literatura de Borges?

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 2ª Parte

As duas comunidades vizinhas são dominadas atualmente por uma mesma facção criminosa, mas na época em que esta história aconteceu, duas facções rivais diferentes dominavam uma comunidade cada.

Carla Camuratti, a atriz e cineasta, estava em evidência quando nossa Carla nasceu. Não era tão bela quanto a Carla cineasta, mas tinha seus encantos. Tinha, também, dificuldade de enxergar à distância por causa da miopia e do astigmatismo, que lhe obrigavam a usar óculos
constantemente. Seus óculos tinham uma bela armação, o que fazia seu encanto não ser tão afetado, muito pelo contrário, tinha um ar inteligente e sedutor ao limpar as lentes dos óculos e, vez em quando, ao meditar, mordia uma das extremidades da armação em poses que
ficariam perfeitas em anúncios de lentes tão comuns nas paredes das óticas.

Por ter aparência de professora desde pequena, decidiu que faria o 2°grau numa escola que oferecesse o curso de formação de professores. Achava linda a imagem de uma multidão de moças vestidas com blusa branca e saias de pregas azul-escuro, abraçadas com seus cadernos, que invadiam o centro de Nova Iguaçu vindas do colégio João Luis do Nascimento. “– Mãe, quero ser normalista quando crescer!” – Dizia Carla com uma empolgação que resistiu a passagem de tempo, alcançando a adolescência. Aqui a vemos já na época dos estágios.
Conseguiu uma vaga para estagiar na escola Anatole France. Esta escola fica no meio de uma das comunidades, entre a comunidade que podemos chamar de comunidade “A”, e Carla morava no centro da outra comunidade, que chamaremos de comunidade “B”. No meio do caminho, entre uma comunidade e outra, não havia apenas uma pedra, mas um lixão, os urubus, as torres de energia, os campos de futebol, os mortos, as balas traçantes e o medo que Carla sentia ao ter que passar sozinha pelo caminho das torres.

Caminhava com receio, olhando para os lados e para trás de si. Nesta manhã, uma mulher levava os filhos para escola, duas crianças que por já terem nascido no meio da violência, não tinham lembrança alguma da época em que a segurança não era uma preocupação tão grande. As crianças corriam brincando de bolinha de gude enquanto andavam, e se afastavam um pouco da mãe, que lhes gritava os nomes para que esperassem por ela. A mulher e os dois garotos estavam a cerca de 100 metros de distância de Carla, á sua frente. Por mais que andasse rápido, não conseguiria alcançá-los. Um pouco menos distante caminhava uma senhora idosa. Andava lentamente, o que fez com que Carla se perguntasse por qual motivo ela não optou por ir de ônibus. Mas, Carla sabia que ninguém iria escolher pegar um ônibus apenas para não passar pelo caminho das torres. Passar pelo caminho das torres é muito mais
rápido pois corta caminho. No caso de Carla, de sua casa até o ponto em que deveria descer para chegar ao Anatole, são apenas duas paradas. Quase não dá tempo de passar pela roleta e descer sem pedir para o motorista esperar um pouco.

O ônibus contorna um morro numa curva bastante acentuada para a direita, anda por uns 150 ou no máximo 200 quilômetros, faz nova curva para a esquerda, acelera um pouco e, depois de atingir uns 75 ou 80 quilômetros por hora, freia com força para não passar do ponto. Talvez
não mais que cinco minutos e todo um microcosmos que é o lixão do caminho das torres some completamente das vistas dos passantes. Mas ele ainda está lá, mesmo que não o vejam.

domingo, 18 de abril de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 1° Parte.

Vários urubus reviravam o lixo em busca de comida. Às vezes, quando uma pessoa passava muito perto, olhavam de forma ameaçadora. Se alguém se aproximasse um pouco mais, davam pequenos vôos e pousavam alguns metros mais distante, o tanto quanto pudessem considerar uma distância segura. Mantinham suas asas abertas para parecerem maiores e mais
ameaçadores do que eram realmente. O movimento de ficarem parados observando as pessoas com as asas abertas servia, também, para permanecerem preparados para novos vôos que os afastariam mais alguns metros de qualquer um que se aproximasse novamente.

Carla tinha medo de passar pelo caminho das torres, como era chamada uma faixa regular de terra que tinha grandes torres de energia e seus cabos como firmamento e, em baixo das torres, dois campos de futebol e um lixão onde habitavam os urubus. O já referido caminho das torres ligava uma comunidade carente que fica de um lado das torres a outra comunidade carente que fica do outro lado. Alguns chamam este terreno de Faixa de Gaza. Isto é um problema, posto que outras comunidades reivindicam o direito de usarem com exclusividade o nome Faixa de Gaza. Argumentam que as suas Faixas de Gaza são mais perigosas, mais famosas e, por estes motivos, mais merecedoras do título.

Disputa inútil na opinião de Carla, e na de qualquer pessoa sensata, já que tal título não é em nada lisonjeiro. Refere-se ao fato de que à noite, era comum ver balas traçantes de fuzis cruzarem os céus à cima das torres. Em resultado disso, muitas eram as manhãs que desvelavam com os primeiros raios de sol a imagem de corpos desovados no lixão. Os urubus, os corpos, o mau cheiro do lixo, a solidão, estes são os principais motivos de Carla ter medo de passar pelo caminho das torres. O medo diminuía um pouco quando Carla passava por lá
acompanhada por outras pessoas. Parecia que quanto mais pessoas a acompanhassem, maior a probabilidade de evitar uma hecatombe. Às vezes, aproveitava a carona do seu tio, que ia de bicicleta para a estação de trens, e atravessava com ele o caminho das torres.

Costumava sentar no bagageiro da bicicleta de lado e segurar na barriga de seu tio. Nessas oportunidades gostava de fechar os olhos para não ver o lixão. Parecia flutuar por sobre toda aquela miséria. Nesses breves momentos sentia-se a pessoa mais importante do mundo,
como se estivesse alcançado o paraíso.

Um dia estava assim voando baixo, desligada do mundo, quando seu tio que estava correndo numa boa velocidade com a bicicleta, desviou de forma brusca de algo que surgiu inesperadamente no seu caminho e soltou uma exclamação de surpresa em forma de palavra chula. Balançou de um lado para o outro o guidão da bicicleta, quase levando Carla ao
chão. Por instinto, ela segurou ainda mais forte e cerrou ainda mais os olhos para não ver o tombo que por pouco não levaram. Não era uma pedra que estava no meio do caminho e sim o corpo de um homem morto que foi abandonado ali, quase escondido pelo mato ralo o suficiente para esconder um defunto. Quase que atropelaram o morto. Como já dito, estes são os motivos de Carla ter medo de passar pelo caminho das torres.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Filmes da Minha Geração (Peu)

Considero que a minha geração é o período de tempo que começou desde o momento em que eu sabia tomar as minhas decisões conscientemente, julgar o que é certo e errado, avaliar as coisas com madureza.

Partindo deste pressuposto, creio que filmes espetaculares que assisti e que assisto, mas que já foram feitos a muito tempo atrás não devem entrar numa lista de filmes da minha geração. São ótimos sim, mas, não são da minha geração.

Sendo assim, eu vou fazer uma breve lista de filmes que considero entre os melhores. Correspondem a produções de meados da década de 90 do século passado até os nossos dias. Certamente haverá muitas ausências de boas produções, mas, listas são só isso, listas.

“Os 12 Macacos” (1995)
“Matrix” (1998)
“O Clube da Luta” (1999)
“O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (2001)
“Cidade de Deus” (2002)
“O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004)
“Mais Estranho que a Ficção” (2006)
“Os Infiltrados” (2006)
“Sangue Negro” (2007)
“Batman – cavaleiro das Trevas” (2008)