NEGRO ROM

NEGRO ROM
INICIATIVA QUE RECONHECE A DIFERENÇA

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 6ª Parte


A diretora era uma mulher de rosto redondo, mas, bela. Embora
estivesse envelhecendo e as marcas da passagem do tempo estarem se fazendo bastante visíveis, ainda era bastante sensual. Usava óculos como todos os professores deste mundo, e conseguia passar muita
confiança e ser persuasiva ao falar. Ao mandar Carla levantar-se e ir até o banheiro, conseguiu ser persuasiva. Disse que era para ela melhor recompor-se, e ir para sua casa, pois naquele dia não haveria aulas. Disse, também, que não se preocupasse com as horas do estágio, ela assinaria como se aquele tivesse sido um dia normal.

Quando saiu do gabinete, um dos sacripantas que a assustou ao vir em sua direção com um pequeno saco transparente com um dedo sujo de sangue dentro, desculpou-se pelo susto que lhe dera e lamentou o fato de que ela veio a desmaiar. Carla aceitou as desculpas, não era culpa do homem o fato de ela não estar preparada para ver um dedo decepado. Se o corredor estava mal iluminado, isso também não era sua culpa. Carla ainda estava meio tonta, e ao andar pelo corredor do colégio, mesmo que o prédio tenha passado por reforma recentemente, parecia que ela via musgo e infiltrações que vazavam água continuamente no teto e nas partes superiores de ambos os lados do corredor. Era como se tivesse entrado em um outro mundo, e nesse mundo estranho, a luz originava-se de velas em candelabros de cobre. As velas, com suas chamas bruxuleantes que deformavam todos os objetos que tocavam, produziam, pelo seu halo projetado nas paredes, sombras ameaçadoras num tom que misturava azul da Prússia com terra de Siena queimada.

A jovem sentia medo e questionava-se quanto a se dar o próximo passo era algo sensato. Sentia o suor escorrendo por seu rosto e por suas pernas. O seu coração estava acelerado. Seus olhos tentavam compensar a miopia, o astigmatismo e a escuridão por se dilatarem. Não sentiu o susto precursor do desmaio e, por este motivo, deu um passo incerto rumo à escuridão que se pronunciava infinita e inevitável. Antes de dar mais um passo, pensou que cairia num buraco, talvez numa masmorra. Pensou que estava num velho castelo medieval. Mas, resolveu dar o passo, posto que já fizera este percurso da sala da diretora até o
banheiro dos professores infinitas vezes e nunca, nem uma única vez, reparara na escuridão, no musgo, nos vazamento ou nas velas. Decidiu que não devia confiar completamente em seus olhos, e deu o passo rumo à escuridão infinita. Se viesse a cair, era porque sonhava, e se
estivesse sonhando, acordaria deste pesadelo em sua casa, com toda a proteção que uma cama pode proporcionar.

Ao dar um passo após outro adentrando na escuridão, Carla percebia que a luz, ou o alcance dela, era ritmado pelos seus passos. Á medida que dava um passo à frente, a escuridão retrocedia, também, um passo. Consequentemente deu um passo após outro, dançando pelo corredor, forçando a luz a bailar com ela no ritmo que escolhesse. Um passo em salsa, outro em valsa, um terceiro em bolero ou ragtime.

Ao chegar ao banheiro não mais sentia tanto medo quanto antes. Abrindo a porta, sentiu um cheiro ocre, que por um segundo associou ao odor do vinagre, mas, no segundo seguinte, desconfiou que não era exatamente vinagre o cheiro que sentia. Não havia muita luz no banheiro e Carla abriu a porta com a mão esquerda e, sem demora, com a mão direita
tentou encontrar o interruptor que faria o favor, se alcançado, de iluminar todo o espaço ali. Não encontrou. “Coisa estranha. Havia um interruptor aqui ainda ontem, ou antes de ontem, já não lembro exatamente de mais nada.” – Pensou ela. A luz que entrava pela janela era parca e não iluminava quase nada. O chão do banheiro estava molhado, dava para ver o reflexo da luz que entrava pela janela refletindo no líquido no chão. Carla sentiu nojo, pois não sabia se a água era limpa ou suja, deveria ter cuidado para não sujar-se. Dava pisadas cautelosas no chão, como que pisando em ovos. Forrou cuidadosamente e com delicadeza o assento do vaso sanitário com papel higiênico. O odor nauseabundo do vinagre, ou de alguma outra coisa que não conseguia identificar, ficava mais forte ao passo que o banheiro ficava mais iluminado. O cheiro fez com que sua boca salivasse, o que aumentava o desconforto e impedia que fizesse suas necessidades com rapidez. Com a demora, teve mais tempo para
deslocar seus olhos míopes pelo banheiro, prestando mais atenção nos detalhes que anteriormente eram ocultados pela escuridão.

Levantou-se, pegou um tanto de papel e secou-se. Olhou ressabiada uma massa disforme que estava num canto do banheiro, em baixo da pia. Parecia ser lá a origem da água no chão e o odor de vinagre. Levantou a calcinha, abaixou a saia e ajeitou-se. Deu um passo em direção à
pia, fixou o olhar e, sim, teve a certeza que o que estava vendo era uma dentadura. “Achei um sorriso! Mamãe, achei um sorriso!” – Pensou ela, lembrando da pitoresca história da menina que achou uma dentadura e, em sua inocência, pensou ter achado um sorriso.
Mas, havia alguma coisa estranha com aquele sorriso. Estava sujo e enrolado no que parecia ser um pano de chão igualmente imundo. A luz que entrava pela pequena janela, iluminava preguiçosamente o pequeno banheiro. Carla, querendo aproveitar melhor a luz, tirou os óculos para limpá-los e assim poder examinar detalhadamente o sorriso que estava vendo ali no chão, bem á sua frente. Teve a impressão que o sorriso era para si. Depois de limpar bem os óculos, pensou que finalmente poderia ver o que havia ali. Recolocou-os com cuidado e assustou-se ao reconhecer uma mandíbula humana e uma arcada dentária completa. Fechou os olhos, mas, infelizmente, a imagem já havia sido capturada por suas retinas e jamais iria permitir que voltasse ao Anatole.

Haviam serrado, provavelmente com uma serra de cortar ferragens em construção civil, a cabeça de um rapaz na altura do nariz. Não avistara lábios e a pele da face havia sido retirada. Uma das orelhas estava pela metade, enquanto a outra estava intacta. Carla vomitou o que havia comido no café da manhã. Saiu correndo do banheiro e gritou por socorro, com todas as forças que haviam ainda em seu corpo. A primeira pessoa a atender seu pedido de socorro foi Rita de Cássia, a faxineira do colégio, que a abraçou maternalmente.

- O que foi minha criança? Não tenha medo, você não está mais sozinha.
- É horrível! É horrível! Lá no banheiro tem... – Calou-se, sem saber descrever exatamente o que acabara de ver. Dona Rita a deixou no chão do corredor, recostada na parede. A diretora, policiais e outras pessoas estavam se aproximando quando Rita entrou no banheiro para ver o motivo dos gritos, mas, saiu quase no mesmo instante gritando, desesperada, “Cruzes! Cruzes!” Ela não conhece latim, e mesmo se conhecesse, dificilmente sairia gritando
“Stauros! Stauros!” Mais ou menos no mesmo instante, num outro ponto daquela comunidade, o
dono da boca de fumo ordenou que tudo aquilo deveria parar.

- Não quero mais nenhum morto na minha comunidade. Um morto trás, em média, uns dois policia. Se o morto for um policia, ele trás uns dez outros policia e eu não lucro nada. Ninguém lucra com uma guerra na comunidade, nem a polícia nem eu. Ninguém sobe um morro pra comprar bagulho, pra gastar dinheiro, com medo de ser grampeado pela polícia ou com medo de levar um tiro na cabeça numa guerra de facção. Quem me desobedecer vai ser desovado no lixão. Espalhem essa noticia pra tudo o que é vagabundo, eu quero paz. Ninguém vai morrer na minha comunidade.

Simples assim, por decreto, a morte foi abolida na comunidade onde se localiza o colégio Anatole France. Para isso, até uma trégua foi feita com a outra facção. A notícia foi espalhada velozmente. Cada homem, rapaz ou menino que ouviu estas palavras foi contá-las para o primeiro homem, rapaz ou menino que encontrou pela frente. Esta corrente continuou a crescer até o ponto em que todos os seres vivos nas duas comunidades sabiam de todas as vírgulas da sentença.

No interior do colégio a mandíbula dentro do saco plástico parecia sorrir e, se sorrir fosse mostrar os dentes, era exatamente isso que faziam aqueles 30 dentes ensangüentados. Sorriam debochando de uma sociedade que já ultrapassou a barreira entre selvageria e civilidade há muito tempo, mas que não tinha coragem o bastante de admitir este fato.

Em breve:
* A 7ª parte (e última) da história de Carla Camuratti, por Peu.
** Mais uma crônica "desafinada" de Adriano C. Andano.
*** E uma edição inédita da "Animalia Sensual", por El Bailaor (quase pronta!!)
.

Nenhum comentário: